Ásia Central

Bukhara essencial

            Nada como poder descansar à beira de uma piscina do século XVII, cercada de amoreiras antigas, com duas magníficas madrassas em cada lado e uma chaikhana com suas tapchan na beira da água. Do outro lado, uma das principais ruas de pedestres de Bukhara começava a se animar com o movimento do final da tarde – senhores conversando nos bancos, crianças brincando no parque, trabalhadores fazendo compras e voltando para casa.

_DSC9926a_DSC9816a

_DSC9937a

            Lyabi-Hauz é o centro da atividade em Bukhara: uma das poucas piscinas que sobraram de dezenas que povoavam a cidade e os canais que as alimentavam. Ao seu redor estão belos edifícios do século XVI e XVII, como a as madrassas Kukeldash e Nadir Divanbegi – essa última com lindos desenhos de pássaros na sua fachada, prova de que o Islã aqui também era mais relaxado em tempos antigos.

_DSC9886a

            Um caravanserai de um lado do lago, um restaurante à beira dele, um jardim o dividindo das madrassas, onde noivos tiram fotos. O sol se punha e deixava todo o complexo arquitetônico dourado.

_DSC0499a_DSC9824a

            Mas esse final de dia perfeito foi uma recompensa e um contraste total à nossa jornada para chegar ali. Saindo cedo de Khiva, passamos por alguns vilarejos, com suas casas tradicionais com videiras na frente…

_DSC9772a_DSC9753a

            …e paramos em um deles para comprar suprimentos para a viagem de cerca de 7 horas, a maior parte dela por dentro do deserto do Kyzylkum.

_DSC9779a

            A distância entre as duas cidades é grande, mas se torna maior pelo estado lastimável da estrada, onde não conseguíamos fazer mais que 30 km/h…

_DSC9792a

            Nenhum sinal de vida em quilômetros, mas uma chaikhana nos salvou na hora do almoço, com sopa e espetinhos de cordeiro deliciosos, como uma miragem. Tivemos, além das dunas que ameaçavam enterrar o já péssimo asfalto, o Amu Darya como companhia por um longo trecho, servindo de fronteira com o Turcomenistão, na outra margem.

_DSC9782a

            No meio da tarde chegamos a Bukhara, uma das cidades mais antigas da Ásia Central, considerada também uma cidade sagrada: seu centro antigo é cheio de mesquitas, minaretes, e madrassas. Há tantas dessas últimas, sem contar as que foram destruídas, que não é difícil imaginá-la como uma cidade universitária. Hoje apenas uma ainda mantém alunos, que pudemos flagrar através de suas treliças: a Mir-i-Arab.

_DSC0281a

            Ela é uma das lindíssimas integrantes dessa praça que pode ser considerada um dos pontos centrais da cidade: além da madrassa, aqui está a mesquita Kalon, enorme, simétrica, bela.

_DSC0182a

            Percorrer seu pátio e corredores, vendo o complexo de vários ângulos, foi um daqueles momentos de surpresa na viagem, quando você se pega admirando o que vê em voz alta.

_DSC0252a

_DSC0286a_DSC0224a

            Mas o personagem principal da praça é mesmo o minarete Kalon.

_DSC0320a

            Ele surpreende por tudo: altura, o trabalho ornamental de tijolos em diferentes desenhos, seus alicerces profundos que evitaram que caísse mesmo depois de vários terremotos. E não somos somente nós, turistas, que ficamos impressionados: até Gengis Khan, não exatamente conhecido por sua piedade e respeito pelos povos que conquistava, ficou tão admirado com a estrutura (provavelmente nunca tinha visto uma tão alta), que poupou-a da destruição que destinou às construções vizinhas. Ela é portanto, uma das poucas lembranças da Bukhara antes da invasão mongol.

_DSC0291a_DSC0298a

            Para poder admirar melhor o complexo arquitetônico, passe por trás do minarete até a área residencial próxima, num nível mais alto: parece outro lugar, tão diferentes as visões. Mas a melhor maneira de constatar a sua grandiosidade é subir até o terraço do restaurante Chashmai Mirob e se encantar com a vista enquanto come mantis recheados de abóbora.

_DSC0159a

            Estávamos visitando o centro compacto de Bukhara numa sexta-feira, dia santo para muçulmanos e a mesquita Bolo-Hauz estava lotada. Senhores rezavam nas áreas interna e externa, mas muitos também se reuniam fora dela, na beira de outro reservatório – era claro que, mais que um evento religioso, a prece de sexta era uma oportunidade para fazer social. E tudo colaborava: o dia ensolarado e agradável, os bancos à beira da água, sob as árvores, a visão da belíssima mesquita coberta de entalhes de madeira, trabalhos em gesso, pilares esculpidos e as cores que cobriam paredes e teto.

_DSC0055a_DSC0074a

_DSC0078a

            Do outro lado da piscina, chamava a atenção uma estrutura pesada, talvez a maior da cidade: Ark, a fortaleza de onde reinaram os khans de Bukhara desde o século V.

_DSC0091a

            O que existe hoje é de épocas posteriores, mas infelizmente boa parte do que há dentro foi destruído pela invasão soviética e o que sobrou não pudemos ver – a visitação estava temporariamente suspensa. Mas as gigantescas e estranhas muralhas estão recuperadas em boa parte e são uma das visões mais inconfundíveis de Bukhara.

_DSC0112a

            Mas nem só de religião vivia a cidade: seus bazares cobertos atraíam multidões de comerciantes e suas caravanas. São estruturas arquitetônicas muito belas, pequenas cúpulas espalhadas aqui e ali pela cidade – é fácil identificá-las em uma caminhada pela cidade.

_DSC0385a

            Cada especialidade se concentrava em um bazar: perto de Lyabi-Hauz há o Taki-Sarrafon, região onde se concentravam os operadores de câmbio.

_DSC9833a

            A região ao sul dele é o tradicional bairro judeu, ocupado densamente desde o século XII e com direito a uma língua própria, mistura de persa com hebraico. A maioria emigrou para Israel, no entanto, e só um grupo pequeno ainda resta em Bukhara.

_DSC9941a

            Próximo à praça central está o bazar Taki-Zargaron, com seu característico pé-direito alto que facilitava a circulação de ar – essencial numa região sempre quente.

_DSC0361a

            Ele pertencia tradicionalmente aos joalheiros e digo isso porque hoje essa divisão de especialidades não faz mais sentido: muitos dos bazares foram perdidos no decorrer da história e, nos que sobraram, hoje a maior parte das mercadorias é composta de tapetes e suzanis (tecidos bordados). Hoje a venda de joias é uma exclusividade feminina no bazar do ouro, ao lado da mesquita Kalon.

_DSC0149a

            A venda de tapetes e têxteis é atualmente a principal função do Taki-Telpak Furushon, ou bazar dos fabricantes de chapéus: seus corredores são tomados por lojas de tapetes e, se você não consegue resistir a um, é melhor passar longe dele. Tudo é lindo, desde os mais finos de seda até os tribais, rústicos. Há tapetes novos e antigos, muitos com o padrão bukhara: fundo vermelho com motivos distribuídos em linhas e colunas. Apesar do nome, a maioria dos bukharas é feita no Turcomenistão, um dos principais produtores de tapetes orientais na atualidade. Mas se você tem a intenção séria de fazer uma compra, pode passar horas muito agradáveis andando pelas lojas, vendo os estoques e negociando.

_DSC0423a

            Certamente as peças que devem chamar a atenção são as antigas, muito belas e bem mais caras. Um bom lugar para apreciar este tipo de tapetes é o pequeno museu que fica dentro da mesquita Maghoki-Attar, bem próxima do bazar. Difícil escolher, no entanto, a que dedicar mais tempo: ao acervo ou ao edifício.

_DSC9862a

            Esta é a mesquita mais antiga da Ásia Central, datando do século IX, construída sobre o que já foi primeiramente um templo budista e depois zoroastriano. Sofreu modificações no século XVI, foi danificada por um terremoto no XIX e recuperada no XX: parte da escavação arqueológica ainda pode ser vista ao lado. Era ela que víamos na névoa da manhã depois de acordar, pela janela de nosso quarto.

_DSC0508a

            Ao contrário de outras cidades uzbeques e quirguizes, Bukhara conseguiu manter algumas poucas construções anteriores ao século XIII e à destruição provocada pelos mongóis. Além dessa mesquita e do minarete Kalon, o mausoléu de Ismail Samani é um exemplo muito bem conservado de arquitetura do Islã: foi construído entre os séculos IX e X, tendo sobrevivido quase sem restaurações graças à sua solidez.

_DSC9943a_DSC9951a

_DSC9984a

            Ele fica num parque a oeste do centro da cidade, onde há também restos da muralha original que protegia a cidade, além do curioso mausoléu Chashma Ayub: há aqui um poço onde as mulheres fazem fila para retirar a água. Segundo a lenda, o bíblico Jó teria batido seu cajado na terra aqui e feito brotar uma nascente.

_DSC0023a

            Seu formato incomum só adiciona à coleção arquitetônica de Bukhara, cheia de estruturas dos mais diversos tipos, ao contrário da unidade vista em Khiva. Outro exemplo disso é o Char Minar, bem escondido em numa praça de um bairro residencial: as quatro torres que o compõem não têm nenhuma função a não ser estética, e funcionavam como um dos portões de uma madrassa que já não existe mais.

_DSC0481a

            A verdade é que a lista vai mais além: a cidade é cheia de antigos palacetes, mausoléus, museus, hammams…Bukhara ainda preserva o ambiente que tinha na época pré-soviética, especialmente na sua região central.

_DSC0175a

_DSC0491a_DSC0284a

_DSC0428a

            É preciso muito mais que dois dias para aproveitá-la como se deve: com calma. Parando para um chá. Entrando nas lojas nem que seja somente para admirar seus tapetes. Sentando num dos bancos de Lyabi-Hauz e ver a transformação do complexo conforme o sol percorre sua trajetória.

_DSC9874a

            Entrando em uma madrassa qualquer e se surpreendendo com o que há lá dentro.

_DSC0390a

            Fazendo amigos. Alugando uma bicicleta para percorrer as vielas dos bairros antigos. Queríamos ficar mais: uma cidade gostosa como Bukhara merece mais tempo, é para ser namorada. Mas o dia seguinte nos reservava um lugar no trem para Samarkand.

_DSC0233a

12 Comments

  1. Arnaldo (FATOS & FOTOS de Viagens

    Foi ótimo viajar lendo seu relato desta nossa passagem pela encantadora, atmosférica, calma e deliciosa Bukhara.
    Mas aqui neste post, os destaques são as fotos. Elas estão perfeitas, nítidas, bem enquadradas e compostas. Perfeitas! (Imagino como serão as feitas com sua câmera nova!)
    Parabéns. Deu saudades!

  2. Bóia Paulista

    Oi, Emília. Tudo bem? 🙂
    Seu post foi selecionado para a #Viajosfera, do Viaje na Viagem.
    Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
    Até mais,
    Natalie – Boia Paulista

  3. Deiatatu

    Este post está simplesmente maravilhoso, por sua “culpa” tive que adicionar Bukhara para minha top-ten list de destinos a ser visitados…. 🙂 Vcs ficaram dois dias inteiros lá? Qtos dias vc recomendaria?

  4. Rafael Carvalho

    Nossa, que lugar incrível! Demais o post, parabéns!!!

  5. Mari Campos

    Que LINDO! Q fotos, que relato, que cores, que céu!!! Bukhara acaba de avançar algumas posições na minha listinha.

  6. Tatiane

    Parabéns Emília!
    Fotos belíssimas! A última mesmo é fantástica!
    Muito bom o enquadramento, você estava usando tripé ou controle?
    Uma coisa que me perguntei: “Se vocês levaram 7 horas numa viagem, conheceram a cidade no mesmo dia?”
    Abraços
    Tati

  7. Emília

    Saudades mesmo, meu querido…Ô, cidade gostosa!
    Um beijo!
    Obrigada, Natalie!
    Oi, Deia, que bom que gostou!
    Olha, eu acho que eu ficaria mais um dia para poder curtir mais o clima da cidade, andar em outros bairros…Com três dias seria fantástico, mas com dois é possível ver a maioria das atrações principais e sobra um pouco para bater perna.
    Um beijo!
    Obrigada pela visita, Rafael!
    Mari, acho que Bukhara é a cidade mais gostosa de passear no Uzbequistão. Khiva é linda, mas Bukhara oferece mais possibilidades.
    Um beijo pra você!

  8. Emília

    Oi, Tatiane, obrigada!
    Eu não uso tripé, nem controle, quer dizer: só o “controle manual”, rs…
    Nós saímos cedinho de Khiva, o que nos deu meio dia, mais o outro inteiro, em Bukhara.
    Um abraço!

  9. Carmen L.

    Eu acho que o ar que você respira nesta cidade de Bukhara é calma. Uma cidade limpae segura.
    Incrível que há tanta paz.
    É certo que as fotos estão perfeitas… mais o seu olhar é melhor que perfeito…
    Bjs

  10. Emília

    Obrigadíssima pelo teu comentário tão sensível, Carmen!
    Você acertou na mosca: é realmente uma cidade deliciosa de passear, andar, relaxar. Foi ali que nos demos conta que o Uzbequistão era realmente um lugar onde você se sente tranquilo, sem preocupações de qualquer tipo com segurança, com ‘touts’ e golpes. As pessoas sã discretas e gentis.
    Um beijo!

  11. Carmem

    Vontade de levar meus olhos para ver tudo isso de perto.

  12. Emília

    Carmem, acho que seus olhos iriam ficar bem agradecidos 🙂
    Um beijo!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *