Ásia Central

Contatos imediatos: Tashkent

            A ansiedade é um bom antídoto contra o sono. O fuso também ajuda, afinal o corpo entende que é apenas 6 da tarde, mas o relógio marca 2 da manhã e tudo o que se quer é chegar ao hotel. Mas a burocracia uzbeque não deixa: para começar, o guichê para concessão do visto está fechado. Pergunto a um guarda e ele coça a cabeça, vira as costas e vai embora. Decidimos esperar um pouco, enquanto os europeus passam tranquilos diretamente para a imigração. Depois de uns 10 minutos aparece um sonolento funcionário, que nem acende a luz da cabine, só abre os olhos o suficiente para checar nossa carta convite e conceder o visto.

            Mas ainda estamos longe de nos vermos livres do austero aeroporto de Tashkent. Somos os últimos na fila da imigração, ainda esperamos um bocado pelas malas e o pior: uma espera maior ainda para passar pelo controle da alfândega. Uma guarda criteriosa analisa o formulário, enquanto a mala passa pelo raio x. Vê nossa nacionalidade e abre um sorriso: o primeiro de muitos que receberemos nos próximos dez dias. Ser brasileiro abre portas e o uzbeque se revelou naturalmente receptivo: uma combinação que transformou uma viagem potencialmente especial em espetacular.

            Percorremos as ruas desertas no meio da noite até o hotel, onde tivemos mais uma amostra da burocracia local: os passaportes saíram com o primeiro papelzinho de registro, com o período de hospedagem. Todos os visitantes devem ter registradas suas hospedagens junto ao Ovir (Escritórios de Vistos e Registros), o que os hotéis normalmente providenciam: é essencial manter todos os papéis até a saída do país.

            Falar que este é um dos bons hotéis de Tashkent não ajuda muito: o lobby desolador e o quarto escuro decorado em tons de vermelho e dourado fazem imaginar que ainda estamos em plena era soviética. Hotelaria não é o forte do país e acabamos nos acostumando à decoração duvidosa, aos colchões com molas quebradas e à caça ao wi-fi (isso sem falar em horários restritos para banho num deles). Mas esse é um incômodo mínimo para tanta recompensa.

            Tashkent é uma cidade antiga, com mais de dois mil anos de ocupação e importância na Rota da Seda. Mas o que vemos, andando pelas ruas, são edifícios relativamente novos, dispostos sobre um plano urbanístico de grandes avenidas. A nova versão de Tashkent data de 1966, quando a cidade foi destruída por um terremoto de grande intensidade e a ocupação soviética decidiu o estilo da reconstrução.

            Resta muito pouco da área antiga da cidade, casas quietas em ruas sem pavimento e casas caiadas…

            …o mais comum é ver prédios comerciais e governamentais de formas retas e conjuntos habitacionais, prédios e mais prédios idênticos.

            O interessante é notar que mesmo as construções pós-independência, incluindo as mais recentes, parecem saídas de um filme de época, voltando aos anos 60 e 70. Deve ser mesmo difícil encontrar um caminho inédito com tantos anos de dominação e um certo isolamento pós-independência com a ditadura imposta por Karimov.

            A lembrança de que estamos em um país relativamente fechado vem em alguns momentos, como nos rigorosos controles policiais em estações de trem e aeroportos, além de algumas proibições desnecessárias de se tirar fotos. Mas o sintoma mais evidente é a maneira comedida com que falam da situação política atual. E ‘dele’. Mas o que faz com os uzbeques tolerem um ditador que tem uma imensa folha corrida de violações de direitos humanos e controle de imprensa (sem mencionar o massacre de Andijon), é o fato de ele manter a paz e a estabilidade no país enquanto mantém longe o fanatismo religioso, mesmo estando cercado por tantos vizinhos complicados como Afeganistão e Tadjiquistão.

            Apesar de tudo, as pessoas seguem com suas vidas e não parecem pressionadas, talvez simplesmente acostumadas com um regime que já dura duas décadas. E percebemos muito bem essa rotina numa instituição da Ásia Central: o bazar. Cada cidade tem vários deles e a maioria das pessoas faz suas compras ali, desde alimentos até roupas, acessórios para cozinha e móveis.

            Em Tashkent o principal bazar é o Chorsu, com sua grande cúpula verde: ele representa bem a mistura do rigoroso estilo soviético com a tradição islâmica de motivos geométricos e presença de cor, tão comum em todo o país. A sua estrutura curiosa rivaliza com a diversidade incrível de produtos espalhados dentro dele e ao longo dos pavilhões: este é um dos mais antigos bazares da país (as construções vistas são apenas a sua cara mais recente) e um dos maiores também.

            Aqui tivemos uma das primeiras experiências da generosidade que encontramos em todo o Uzbequistão: um mocinho nos oferece uma bolinha de iogurte desidratada para experimentarmos, um dos petiscos mais comuns. Confirmando a nossa aprovação, ele coloca uma boa quantidade num saquinho e nos dá de presente – não aceita de maneira nenhuma o pagamento. Tivemos muitas experiências semelhantes durante a viagem, gentileza expressada naturalmente.

            O bazar Chorsu é também um lugar de fácil acesso a uma idiossincrasia uzbeque: o câmbio. A grande diferença entre o oficial e o negro faz com que ninguém utilize o primeiro. Além disso, a moeda (som) vale muito pouco, o que assusta quem troca uma nota de US$ 100: um bolo de dinheiro que ocupa boa parte de uma bolsa ou mochila e exige paciência na hora de contar as cédulas para qualquer pagamento.

            Até mesmo o valor da primeira refeição assusta, enquanto não nos acostumamos com a conversão: pão, salada de tomates e pepinos, alguns shashlyks (espetinhos) de cordeiro, sempre entremeados de pedaços de gordura, e potes de chá, pedidos em qualquer situação. Esses são os básicos da alimentação uzbeque e muitas vezes é o que se tem para comer. Mas apesar do pão corresponder somente às vezes às expectativas, o cordeiro raramente decepciona. E o chá, verde ou preto, se tornou nossa bebida básica de todas as refeições e ocasiões.

            Outras opções são o manti (espécie de dumpling), shorpa (caldo de carne com batatas e pedaços de carne), pelmeni (espécie de capeletti in brodo), dimlama (cozido de carne e legumes) e, claro, o prato nacional do Uzbequistão: o plov – arroz com pedaços de cordeiro, sendo preparado de diversas formas, mas sempre com muito óleo. Em Tashkent existe até um restaurante gigantesco especializado no prato: o Centro de Plov da Ásia Central. As refeições não são muito variadas e o excesso de carne e gordura pode ser um pouco desafiador para os vegetarianos e os que estão em dieta.

            A chaikhana onde almoçamos ficava em frente ao complexo religioso Khast Imam, o mais importante do país, composto por uma mesquita, uma madrassa (escola corânica), mausoléus e um museu de unidades raras do Corão: uma das mais interessantes atrações da cidade é justamente o mais antigo que resta no mundo, escrito no Irã no século VII. Enorme, é escrito em pergaminho na caligrafia kufi, uma forma antiga da escrita árabe. Curiosíssimo, mas infelizmente não pode ser fotografado – uma foto pode ser vista aqui (pela qualidade, tirada na surdina).

            Os uzbeques não usam mais a escrita árabe desde o início do século XX, quando foi introduzido o alfabeto latino na esteira da modernização das línguas turcomanas iniciada por Atatürk na Turquia. Pouco tempo depois os soviéticos obrigaram o uso do cirílico para grafar a língua uzbeque e durante décadas essa foi forma dominante, até a independência. Hoje, o alfabeto oficial é o latino, mas na prática o cirílico é tão usado quanto ele. O russo também é falado pela maior parte da população e quem sabe falar a língua tem grandes chances de socializar.

            Além dos caracteres cirílicos, outro resquício soviético é o metrô de Tashkent, mais uma  grande atração de Tashkent que não pode ser fotografada, por motivos estratégicos. Uma pena, pois as estações são espetaculares, cada uma em um estilo diferente, embora não tão grandiosas quanto o sistema-mãe, em Moscou. Construído nos anos 70, proporciona uma viagem no tempo para quem entra em um dos seus vagões azuis e verdes, as cores nacionais.

(foto de guidecity)

(foto de livetashkent (e) Nir Nussbaum (d))

            As estações centrais permitem acesso às avenidas largas e sombreadas próximas ao Senado, ao palácio do presidente, museus e à praça Amir Timur, com uma estátua equestre do próprio.

            Num dos lados da praça está o Hotel Uzbekistan, um clássico da época soviética, e é ali que os moradores da cidade passeiam e aproveitam o final do dia. Como nosso voo do dia seguinte foi adiantado pela Uzbekistan Airways, perderíamos meio dia que teríamos em Tashkent e então nós também aproveitávamos ao máximo o resto do nosso dia.

21 Comments

  1. Arnaldo - FATOS & FOTOS de Viagens

    Parece que foi ontem. Que delícia de post. Muito bom relembrar nossa viagem desde o primeiro momento: a chegada a Tashkent de madrugada, o aeroporto, a burocracia da imigração e da alfândega…
    Você conseguiu dizer tudo o que eu não, da capital do Uzbequistão. E até conseguiu fotos do metrô!
    Bom de ler, bom de ver, bom de relembrar. Cada foto, uma viagem. Que delícia de post….

  2. Flora

    Que post encantador Emilia! Voce nos transportou para lá.
    São notáveis as semelhanças com Moscou, o metro, os prédios, os ladas, o hotel, fiquei num igualzinho por lá. Estou adorando acompanhar sua viagem por aqui também. Bjs

  3. Tony

    Grande privilégio poder acompanhar a viagem de vocês através de dois textos e dois olhares. Adorei o bazar Chorsu. Beijos!

  4. Eder Rezende

    Bom dia
    estou super feliz de encontrar ouros viajantes que ja conheceram as belezas do Uzbequistao. Estivemos por la em 2011 e amamos. Temos varios posts sobre o pais em nosso blog (www.quatrocantosdomundo.wordpress.com) depois da uma conferida por la.
    bjs
    Eder

  5. Luciana Betenson

    Também adorei o bazar Chorsu! Mesmo com toda a burocracia, deu mais vontade ainda de ir. Lindo post, Emilia 🙂

  6. Igor

    Estou adorando acompanhar esta viagem. Tenho planos de ir ao Uzbequistão um dia, por isso estou gostando tanto das informações que vc está dando. Parabens!!! Sò senti falta de ter o roteiro que vc fez, por quais cidades passou e quanto tempo ficou (ou será que tem e eu não vi ainda). Acho que já estou ansioso para saber tudo o que vc viu por lá… hehehehe… parabens pelos posts!!!

  7. Gustavo - Viajar e Pensar

    Excelente Emilia
    Lindas imagens e excelnet explicações.
    O metro é identico aos russos.
    Plov é o carro chef deste lado do mundo kkk
    Comi uns que é melhor nem comentar tb.
    Bom fim de semana e curtindo os relatos
    :*
    @GusBelli

  8. Emília

    Que saudades daqueles momentos antes da aterrissagem em Tashkent…mal sabíamos como teríamos duas semanas incríveis (quer dizer, tínhamos uma idéia, mas só na imaginação).
    Até da burocracia acabamos dando risada na hora 🙂
    Um beijo, meu querido.

  9. Emília

    Flora, eu morro de vontade de ir para a Rússia, desde que minha família esteve lá em meados dos anos 90 e voltaram encantados e cheios de história.
    Que bom que te fez lembrar um pouco da sua viagem…para mim foi uma maneira de experimentar um pouco a Rússia sem ter ido para lá ainda.
    Obrigada pela visita, Tony! Os bazares são os lugares mais legais sempre, por estar ali a vida real, e não a turística. Os da Ásia Central são uma loucura 🙂
    Um beijo pra vocês!

  10. Emília

    Oi, Eder, seja bem-vindo!
    Puxa, eu dei um pulo lá e vi que eu já tinha visto alguns dos posts há muito tempo atrás e não me lembrava de onde tinha visto! Agora consegui ver os outros posts também.
    O país é muito gostoso de visitar, não acharam? Nos sentimos muito bem por lá, além de tudo de incrível que vemos. Dá vontade de voltar um dia para conhecer outras cidades.
    Um abraço!
    Luciana, a burocracia existe, mas nada desesperador. Já foi pior: dizem que a polícia em Tashkent era terrível, pedia passaportes por nada (e pediam dinheiro para devolver, claro…)
    Um beijo!

  11. Emília

    Oi, Igor! Recomendo fortemente que continue pensando no país, merece muito estar entre os destinos mais desejados do mundo.
    O nosso roteiro foi somente pelas quatro cidades principais, dois dias em cada: Khiva, Bukhara, Samarkand e Tashkent (que acabou com somente um dia). Tem muita coisa bacana mais, como Nukus, Shakhrisabz, vale do Fergana (mas não sei se está tranquilo para visitação agora) e talvez ficar mais um dia em Tashkent, outro mais em Bukhara (que é uma fofura de cidade).
    Boas pesquisas 🙂
    Gustavo, me senti muito mais próxima da Rússia em Tashkent, inclusive pela grande quantidade de russos étnicos na cidade. Sem falar no metrô, nas construções. E quanto ao plov…só me animei com o do Centro, pois os poucos que provei não estavam uma maravilha. Preferia os manti, pelmeni e shashlyks 🙂
    Aproveite o final de semana!

  12. mirelle

    tô viajando com vcs! adorei as explicações, tudo tão novo pra mim. mais uma vez, obrigada por compartilhar e parabéns pelas fotos e sensibilidade.
    ps: e em relação as roupas para as mulheres viajantes? tem restrições?

  13. Emília

    Oi, Mirelle!
    Como em todo país muçulmano, as mulheres não mostram muita pele, mas a diferença é que aqui existe um islã moderado e os lenços vistos nas cabeças das mulheres são mais tradicionais que religiosos.
    De qualquer maneira, eu sempre procuro me vestir com calça e blusa que cubra o derrière: eu tenho umas túnicas indianas de algodão que sempre uso nestes lugares (são da Anokhi -www.anokhi.com – adoro). Procuro também não deixar ombros à mostra (hábitos mantidos das viagens à Índia), nem decote. Ah, uma echarpe é sempre útil para cobrir a cabeça em mesquitas.
    Mas achei que os homens nessa parte do mundo muito corteses e raramente endereçam olhares mais constrangedores, quanto mais falar algo.
    Um beijo!

  14. Bóia Paulistaa

    Oi, Emilia. Tudo bem? 🙂
    Seu post foi selecionado para a #Viajosfera, do Viaje na Viagem.
    Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
    Beijos e até mais,
    Natalie – Boia Paulista

  15. Lu Malheiros

    Emília,
    Outro post maravilhoso! Parabéns! Fiquei ainda mais animada para conhecer o país! O que não me animou muito foi a comida…
    Bjs

  16. Carmen

    Emilia, quando eu fui para Praga, quando era a capital da Tchecoslováquia, ainda tinha uma forte influência soviética, especialmente nos subúrbios da cidade. É uma arquitetura muito peculiar (um pouco fria e racionalista…)
    As histórias de sua viagem estão se tornando mais interessante. Siga dizendo coisas de lá.

  17. Emília

    Obrigada, Natalie!
    Oi, Lu!
    Olha, realmente a gastronomia (se é que esse termo pode ser usado aqui) não é o forte. Mas longe de estar num nível de passar fome e, além disso, todo o resto compensa muito. Mantis e pelmenis sempre salvam a refeição 🙂
    Carmen, viajar por estes países é como se tivéssemos voltado no tempo a esta época de fim de período soviético, como você viu em Praga. O estranho é que as construções novas seguem ainda um a linha parecida…
    Um beijo para todas!

  18. Luiz Renato

    Escorço é uma técnica de pintura por meio da qual o artista confere o efeito tridimensional a algum elemento da composição, a ponto de se ter a impressão de que ele “sai da tela” e se projeta em direção ao observador. Neste excelente capítulo sobre o Uzbequistão é que me dei conta das razões pelas quais o blog da Emília é-me continuamente tão atraente. Aquele conceito ajudou-me a entender isto. Por mais diferentes que sejam as paisagens, ou mais exóticas e exuberantes que sejam as culturas, há um ponto comum às fotos (e textos) marcantes deste blog: a impressão constante que tenho de que elas projetam humanidade para quem as observa. Um escorço fotográfico, tempero essencial deste endereço. A felicidade do retrato humano, dos momentos mágicos e delicados, aos mais brutos e trágicos. A percepção do humano enquanto diversidade e identidade de todos nós. Razão a mais de este blog fazer parte de minha dieta espiritual cotidiana.
    Meus mais sinceros parabéns pelo presente capítulo!
    Sempre à espera dos próximos.
    o amigo,
    Luiz Renato.

  19. Ana Luiza Franceschini

    Olá, Gostaria de saber se estaria interessado em uma parceria link exchange com nossos sites sobre turismo. Aguardo contato e obrigada. Parabéns pelo blog!

  20. Emília

    Luiz, por mais que o conheça há tanto tempo, ainda me surpreendo com você!
    Como agradecer essas palavras tão especiais e tão gentis? Fico muito feliz que o blog te transmita essa sensação: é o que eu tento proporcionar aqui. Nem que seja por um breve momento, a vontade de transportar o leitor para aquele destino.
    Vindo de você, em especial, sinto o elogio em dobro 🙂
    Obrigada novamente e um beijo!

  21. http://www.hotelviagem.com

    Olá,
    Meu nome é Saulo e gostaria de fazer um guest post para
    seu site com o tema relacionado a viagens e turismo.
    Eu tenho um blog de dicas de viagem, hospedagem e
    passagens, é o http://www.hotelviagem.com
    Muito obrigado e fico no aguardo de sua resposta!
    Saulo – Blog Hotel Viagem

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