Cuba

Estamos em Santiago


Cuando yo llegue
A mi Oriente querido
Cuando yo asome
Al balcón de la capital
Cuando yo sienta sonar
Las campanas de la catedral
Doy un salto de alegría
Y les digo a los viajeros
Estamos en Santiago
(Balcón de Santiago – Francisco Repilado)

               “El Oriente” é uma terra gloriosa: para o governo e seus simpatizantes este é o berço da Revolução, quando a Serra Maestra abrigou Fidel e seu pequeno exército frente a Fulgencio Batista. Perto dali também fica o parque nacional do histórico desembarque do Granma. E Santiago de Cuba, nosso destino, abriga o Quartel Moncada, uma tentativa fracassada de tomada do poder por parte dos rebeldes (tratada como ato de grande bravura, no entanto).

               Mas o Oriente de Cuba é glorioso também por ser a origem de algo muito mais interessante: a música cubana – intensa e envolvente. Desde o século XVIII, Santiago foi o foco musical no país, desde o barroco, passando pelas contradanças, habaneras, evoluindo para o danzón e posteriormente o changuí, a trova e o són. Entre os nascidos na região, o destaque é Francisco Repilado, conhecido mundialmente como Compay Segundo.

               Vir para Cuba é, para muitos, uma oportunidade de presenciar a maravilha que é essa mistura de sons europeus e africanos, cozidos no mesmo caldeirão por mais de dois séculos e que gerou uma gama imensa de ritmos. A música surgida nesta parte do Caribe influenciou a criação musical de muitos outros países e, ao se espalhar pelo mundo, até hoje deixa mais feliz a vida de muitos admiradores.

               Você vai encontrar música em Havana: em cada bar e em cada restaurante de Habana Vieja há um grupo tocando música de ótima qualidade, mas o que acontece é que, depois de um dia curtindo o bairro antigo, corre-se o risco de repensar se o seu repertório no iPod precisa mesmo do álbum do Buena Vista. Especialmente Chán Chán. Mas a idéia só passa rápido pela cabeça.

               Existem vários clubes na cidade e queria especialmente tentar a Casa de La Música, conhecida por ter bons shows de salsa. Fomos desencorajados de ir à de Centro Habana, por conta dos arredores perigosos, e tentamos na de Miramar, depois de um jantar no ótimo paladar La Cocina de Lilliam, ali perto. Uma fila enorme cheia de jovencitos e o local remoto nos dissuadiram. Até tentei um programa que parecia bem turístico mesmo, uma banda estilo…Buena Vista, num bar da Plaza Vieja.

              Depois de descer o Prado pobremente iluminado e mesmo assim lindo, o táxi contornou a entrada do porto e nos deixou na Plaza de San Francisco. De dia, linda. À noite, encantadora, com as luzes que iluminam a igreja e os prédios grandiosos refletidas no chão de paralelepípedos. Depois de um jantar no Café Del Oriente e uma caminhada pela Calle Mercaderes, é até possível imaginar como seria uma Havana Vieja inteiramente restaurada, romântica…Mas os recônditos abandonados também tem sua beleza e sua atmosfera, apesar da luz chegar apenas ao corredor turístico. Como conciliar esses dois mundos diferentes vivendo em um mesmo bairro? Até que ponto será viável continuar restaurando tendo em vista outras necessidades dos seus moradores? E como será quando chegar o momento em que, imaginando um futuro democrático e de crescimento, Havana Vieja começará a ficar cara para aqueles que estão ali há décadas? É fácil perceber a dualidade centro turístico versus centro dos moradores. Não há muita movimentação de visitantes além da Plaza Vieja – aliás, voltemos a ela.

               Apesar da reserva, percebemos que não há lugares para nós: ah, a eficiência e organização estatais…A banda é muito boa e o mojito não vai mal, mas a mesa improvisada é uma piada e decidimos que ainda não tínhamos achado um lugar decente para ouvir música cubana.

               Tudo mudou quando colocamos nossos pés em Santiago, após provarmos de um dia inteiro de desorganização dos aeroportos e companhias aéreas cubanas. Cancelamentos, brigas, funcionários claramente sem idéia do que faziam, atrasos e mais atrasos, várias situações kafkianas nos fizeram rir – era a única saída possível para mantermos a calma. Mais do que nunca precisávamos de boa música e diversão de verdade.

               E conseguimos, achamos nosso canto na capital da música cubana: a Casa de la Trova. No centro, junto à também venerável Casa del Estudiante, ela nos acolheu nas noites santiagueras com música deliciosa. Muita salsa, són e guaracha ouvidos no balcão de ferro batido, com vistas para a catedral e casais dançando na pequena pista, junto à orquestra. O público é misturado, cubanos e turistas, gente de todas as idades, astral altíssimo. Bons mojitos e minha querida mãe como musa da banda, que mais eu posso querer?

               Uma das noites foi justamente o Réveillon e a festa da Casa de la Trova acabou resvalando para o vizinho Parque Cespedes, lotado de gente comprando e comendo bolos cheios de merengue (um costume local). Aliás, descobrimos um padrão de extremos em Santiago: comida horrorosa e música divina – até o café da manhã sofrível do nosso hotel ficava um pouco melhor com a presença de um moço pianista impecável. E, se os bolos verdes não nos apeteciam, uma ótima banda tocando em frente à prefeitura confirmava a teoria, muita gente dançando no meio da praça, inclusive uns poucos turistas treinando o que aprenderam nas aulas de salsa. Diversão familiar e tranqüila, me fazendo lembrar de tantas festas passadas no interior de São Paulo e Minas.

               E Santiago, mesmo sendo a segunda maior cidade de Cuba, nos parecia mesmo com uma cidadezinha do interior, aprisionada dentro de uma bolha do tempo marcando anos 50. Não faltava nada, nem os famosos carrões, nem os anúncios das lojas, os paralelepípedos ou os vendedores de frutas ambulantes. Os prédios eram mais da virada do século XX, mas a única coisa que realmente destoava era a vestimenta de moços e moças, cuja desinibição e gosto por brilhos e bordados não guardava nenhuma semelhança com aquela época elegante.


               Os trilhos do bonde ainda são mantidos grudados ao asfalto e vão conduzindo num passeio sem pressa pelo centrinho compacto: a casa de Velázquez, tida como a mais antiga de Cuba…


              …o balcão com vista para o porto, os museus, a encantadora livraria do Conrado (onde o papo e o acervo fazem o tempo andar rápido demais)…


               …o pátio da Artex – o lugar para comprar música ouvindo bandas excelentes, a rua do comércio e seu ambiente retrô…


…e as graciosas pracinhas ali e aqui.

               O Parque Cespedes é a principal delas, onde ocorre footing sério e muita fofoca, imagino…

              …e, para ter uma visão privilegiada do movimento e um bom cafezinho, o melhor lugar é a varanda do hotel Casa Granda. Segundo Graham Greene, aqui era um ponto de espiões na época revolucionária, mas hoje a observação de pessoas é apenas um esporte.


               Os tempos já foram mais ameaçadores, considerando também toda a atividade revolucionária que ocorria na Sierra Maestra (que envolve a cidade): até o século XVIII Santiago era um entreposto comercial famoso no Caribe e altamente desejado por todo tipo de aproveitadores que navegavam por estas águas. Várias foram as ocasiões em que a cidade foi invadida, queimada e saqueada por piratas e corsários e a solução foi a construção de uma fortaleza que guardasse a entrada da baía.

              Uma belíssima fortaleza acabou saindo: Castillo de San Pedro de la Roca, reconhecido pela Unesco como um dos melhores exemplos de arquitetura renascentista no novo mundo. Além de tudo ainda há um museu de pirataria, muito informativo, e vistas para o mar azul do Caribe abaixo e até onde o horizonte alcança. Muito silêncio e iguanas medrosas, nem parece ser uma das maiores atrações turísticas da região.


               Se o dia estiver bonito,  como era o nosso caso, dá vontade de estar mais próximo da água. Mas é uma pena não haver praias bonitas perto de Santiago, a melhor opção é contornar uma parte da baía e fazer uma rápida travessia de barco…


               … até o Cabo Granma, ilhota que abriga uma colônia de pescadores.

               A população do leste de Cuba tem raízes jamaicanas e haitianas, pela proximidade da sua costa com esses dois países e é fácil perceber essa origem nos rostos das pessoas reunidas na praça e nas crianças que brincam pela única rua do povoado.


               Se em Santiago a sensação é de estar em uma cidade do interior da primeira metade do século XX, em Cabo Granma é como se o tempo tivesse parado de vez, nem a brisa soprava. Além de duas lindas meninas que nos fizeram um pouco de companhia, somente uma cachorrinha encantadora nos acompanhou na caminhada em volta da ilha, uma coleção de casinhas de madeira que traduz bem a palavra bucolismo.



               Almoçar por ali permitiu aproveitar mais um pouco da calma e sonolência deste canto de Cuba, um complemento e um respiro do ar frenético de Havana, para onde voltaríamos no dia seguinte, já com saudades.

11 Comments

  1. Arnaldo - Fatos & Fotos de Viagens

    Viajar com você é um privilégio, ser seu marido e ótimos companheiros de viagens, com tantas e tão grandes afinidades, um sorte (minha).
    Aqui, lendo este texto, mesmo que não a conheça, quem jamais tendo pisado em Cuba, poderá notar, pela maneira como descreve, deixando suas emoções registradas sem que sequer as mencione (e foram tantas!), porque viajar com você é um privilégio.
    As fotos não seriam bastantes sem suas palavras. Elas estão ótimas, mas o texto está fiel ao que sentimos, ao que a cidade é para quem sabe enxergá-las, e descrevem com precisão o que a gente lê com encantamento.
    É magnífico relembrar em suas palavras os furos falsos de balas do o Quartel Moncada, a mais encantadia noite de Ano Novo que pasei na vida na Casa de la Trova, a música mais ouvida – o Chán Chán – (depois da terrível Yolanda!), o jantar no”paladar” La Cocina de Lilliam, na fila enorme de “jovencitos”, nos bolos verdes, nos trilhos encristrados no asfalto de Santiago, nas situações kafkianas daquele vôo entre Havana e Santiago, especialmente na tocante cadelinha que nos seguiu…
    Vejo um estilo, uma poesia, um romantismo e um jeito novo de escrever que me atrai, me agrada, me encanta e que gostaria de ver e rever em novas matéias tão lindas quanto estas de Cuba, já que temos TANTAS vioagens feitas e por fazer que ainda não apareceram aqui.
    Parabéns! é pra ler, reler e amar.
    Um beijo!

  2. Mô Gribel

    Emília,
    Você escreve divinamente…
    Eu fiquei muito impressionada com a aparência de Cuba. Está em ruínas, ao mesmo tempo que é ‘pitoresco’ e fotogênico ao extremo, é muito triste de ver.
    Um beijo!

  3. Joana

    Eu não iria a Cuba nunca. Não entendo como gostar de ver casas caindo de velhas, carros do início do século passado, mulheres e homens decadentes. Pobreza por pobreza é só dar uma volta nas periferias das grandes cidades . Como ver “charme e outros encantos “em um país tão decadente? Além disso me sentiria mal em estar em um lugar em que a ditadura (mortes e torturas) são a tônica vigente. Parece que o país exerce uma atração masoquista nas pessoas.Não entendo . Há tantos lugares lindos onde se aprende tanto e ir em Cuba…

  4. Emília

    Arnaldo, que viagem linda com você, meu querido. Triste, emocionante…e supreendente, como esta que acabamos de fazer. Um beijo…
    Mô, viajar por Cuba traz a sua cota de tristezas e melancolias, por ver que as possibilidades são muitas, mas foram interrompidas. É, no entanto, um lindo país, de gente que vive intensamente. Obrigada pelas palavras…um beijo!
    Joana, a escolha para onde viajar é um direito de cada turista, mas deixar de visitar um lugar extremamente interessante como Cuba simplesmente porque o lugar é ‘velho’ ou ‘decadente’ é no mínimo superficial. Para ir mais fundo, sobre a questão da ditadura que ali existe há tantos anos, viajar não é uma maneira de apoiar ou validar esse regime político: quanto mais visitantes, mais a realidade do país é mostrada, assim como o próprio povo tem contato com o mundo exterior. Não há motivos para privar um povo sofrido como o cubano da possibilidade de troca cultural e da entrada de divisas: como já disse a dissidente cubana Yoani Sanchéz, as pessoas não devem confundir Cuba com seu regime político. As pessoas, a cultura, o país são muito maiores do que isso.

  5. Carmen

    Nossa viagem para Cuba durou 20 dias. Nós visitamos a Cuba ocidental e central de norte a sul. Tomamos banho em Maria La Gorda, visitei as colinas dee os mogotes no Valle de Viñales, vimos crocodilos no Ciénaga de Zapata, que nós nadamos na Bahía de Cochinos, nós visitamos a cidade monumental de Cienfuegos, nós caminhamospelas pelas ruas da cidade de Trinidad. Despois fomos para o norte ao Cayo Santa Maria e terminamos a viagem em La Habana. Foi uma aventura. Alugamos um carro.
    Nós não poderíamos chegar a Santiago. A ilha é grande. Estávamos ansiosos para conhecer o lugar. Depois de ler a sua história, ainda eu tenho mais vontade de conhecer Santiago de Cuba.
    Beijos
    Carmen

  6. Emília

    Carmen, essa sim é uma grande viagem a Cuba! Alugar carro deve ser uma aventura, com as estradas e os caronistas… Nós queríamos ir a Santiago de carro, parando em Trinidad, Cienfuegos, Sancti Spiritus e outras, mas tivemos problemas para encontrar acomodação, já que era altíssima temporada. Mas melhor, pois pudemos aproveitar melhor cada destino, ficam para a próxima…
    Obrigada pela visita, é ótimo ver você por aqui. Um beijo!

  7. Bóia Paulista

    Oi, Emília. Tudo bem?
    Seu post foi selecionado para a #Viajosfera, do Viaje na Viagem. Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
    Beijos.
    Até mais,
    Bóia Paulista

  8. Emília

    Muito obrigada, Bóia!

  9. Anabela

    Olá, Emília! Tudo bem?
    Adorei o blog!
    Gostaria de entrar em contato para fazer uma proposta interessante para o blog.
    Aguardo seu retorno.
    Grata,
    Anabela.

  10. josé Faria

    Um Blogue de viagens que prima pela sua excelência quanto ao texto descritivo, assim como, às belíssimas fotografias que o colorido das suas gentes e terra proporcionam ao visitante que gosta de fotografar.

  11. Emília

    Obrigada pela visita, José!
    Fico feliz que tenha gostado do blog, um abraço.

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