Istambul

No reino sufi


Há muito tempo, eu me lembro de ter visto uma cena dos dervixes rodopiantes e aquilo me fascinou, que cena de grande beleza… Passou muito tempo e, quando estava pesquisando a cidade, vi que existiam alguns lugares em que a cerimônia sufi (uma corrente mística islâmica), chamada sema, era aberta ao público.
Na verdade, a cidade base da ordem mevlevi – a mais conhecida ordem sufi – é Konya, onde viveu e se estabeleceu Rumi, teólogo e fundador da ordem no século XIII. Mas ficam em Istambul também alguns mosteiros, como o Mosteiro Mevlevi em Galata, onde o cenário é perfeito para entrar no espírito da cerimônia.

(foto de www.igougo.com)
Infelizmente o mosteiro estava em reformas e fui para a segunda alternativa. Aliás, alternativa mesmo: um mosteiro num bairro distante de Istambul, poucos turistas…mas o meu timing na cidade não permitia (informações com o pessoal da Les Arts Turcs).
A terceira opção era uma cerimônia numa das salas da estação de trem de Sirkeci, à beira do Corno de Ouro. Essa era a estação final onde parava o lendário Expresso do Oriente. Àquela época os glamurosos passageiros deveriam parar neste restaurante para se refrescar ao sair do trem…

…antes de cruzar a ponte de Galata, ali pertinho, rumo ao Hotel Pera Palas, do mesmo grupo. Puro luxo.
Hoje Sirkeci é base para várias linhas urbanas de trem e também para trens com trajetos longos. Nada lembra aqueles tempos áureos, mas para mim estações de trem têm um apelo irresistível, herança do meu querido pai, que adorava conferir as máquinas, ver o fluxo de pessoas e curiosar sobre os destinos…

Neste final de tarde, a velha locomotiva da TCDD (a companhia estatal turca de trens) estava acoplada a uma série de vagões talvez tão antigos quanto, da OSE (a sua equivalente grega), num roteiro Istambul-Thessaloniki que depois seguiria seu caminho com muitos turistas orientais a bordo.

Já havia fila para entrar no salão e pegar os lugares da frente…apesar de ter conseguido um bom lugar, as fotos ficaram péssimas 🙄 , mas seguem apenas para dar uma idéia do ambiente.

A primeira parte da apresentação é de música sufi, instrumental. Ali já se percebe um pouco o tom solene: a percussão, o toque oriental, o coro. Logo em seguida entram os dervixes, silenciosamente, portando a roupa tradicional da cerimônia, onde cada peça tem significado: o chapéu pontudo representa a lápide do ego (as lápides em cemitérios muçulmanos têm esse formato) e a saia branca rodada é a mortalha do mesmo. A entrada é feita com uma longa capa preta e, quando cada dervixe chega ao seu lugar de início, ela é retirada, simbolizando o renascimento do espírito. Um dos pontos essenciais para o rito sufi é a negação do ego para que se possa entrar em contato com o divino.

E então…começam o movimento de rodar, as mãos cruzadas no peito vão subindo como em um balé, os braços se desenrolando até se esticarem na altura da cabeça, a direita virada para o céu, para receber o amor divino, a esquerda para baixo, distribuindo esse amor entre os presentes à cerimônia e estendendo a toda a humanidade. Cada um tem sua vez de começar, até que todos estejam realizando um rodopio suave, contínuo.
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O processo todo é longo e cheio de detalhes e ele se repete algumas vezes durante cada cerimônia. O girar é ininterrupto e é difícil acreditar que eles possam realizar o movimento durante tanto tempo, equilibradamente: somente o transe explica poderem girar sem perderem o equilíbrio, com tanta harmonia. Pode parecer que o tédio toma conta, mas o efeito é hipnótico, ao ver o efeito e os detalhes de movimento de cada dervixe…um em especial era tão concentrado e leve que quase captava toda a atenção. Também não há como não se deixar tocar por essa jornada espiritual rumo ao divino, que é a essência da sema.
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A cerimônia termina e, um a um, vão deixando o salão…todos saem em silêncio, ainda sob a impressão do que se viu e ouviu. Para manter o espírito da noite, nada como sentar no banco da estação a tempo de ver, a partida do trem ao som da locomotiva e seus apitos, todo ele sumindo na curva, no escuro…

23 Comments

  1. Arnaldo - Fatos & Fotos de Viagens

    Eu não tive a oportunidade de assistir aos dervixes como você, isto é, no seu ambiente mais tradicional e autêntico em Istambul.
    Ao contrário, comigo eu os assisti numa apresentação num show turístico chamado “KERVANSARAY NIGHT SHOW CLUB”, ainda que voltado a turistas, todavia de muito boa qualidade e extremamente bem apresentado, com um apresentador dando informações iniciais bem prioveitosas.
    Dentre as atrações daquele show em 2001, – danças folclóricas, dança do ventre, músicas turcas e tudo mais – a dos dervixes foi seguramente a impressionante, tocante. E ainda que eu não soubesse muito a seu respeito, saí dali tocado e me sentindo um privilegiado por ter visto aquela apresentação.
    Seu texto, portanto, é uma ótima ajuda a todos os que tenham a curiosidade de assistí-los em Istambul e, estou certo, vai tornar-se uma referência na blogosfera.
    Parabéns!
    (precisamos voltar a Istambul!)

  2. Jessika

    Adorei o que vc escreveu, realmente me fazem imaginar como seriam eles em movimento e confesso que fiquei muito muito muito curiosa para ver os videos, mas eles sao restritos, infelizmente… 🙁

  3. Emília

    E pensar que durante muito tempo as cerimônias sufi foram proibidas (durante o governo de Atatürk)… Acredito que em Konya ainda seja possível ver as cerimônias autênticas, mas essas de Istambul já dão um gosto. Toda a filosofia sufi é muito interessante e vale a pena se aprofundar um pouco antes para aproveitar bem a sema…grande experiência, mesmo para quem está sentadinho.
    Obrigada 😉
    Jessika, já corrigi a falha! Dá para ver agora os movimentos, especialmente os do início (no primeiro vídeo). Obrigada por avisar! 😀

  4. viagem afora

    Que lindo !!! Estivemos lá e infelismente nâo assistimos os dervixes rodopiantes, por puro deslecho, sabe!! Agora vendo seu post, falamos, putz… perdemos esse espetaculo, deveriamos ter ido, mas beleza fica motivo para voltarmos !!
    Lindo post !!! Bjs
    viagemafora.blogspot.com

  5. Maryanne hotelcaliforniablog.wordpress.com

    Oi Emilia, eu assisti esse mesmissimo show que vc. Quando terminou, eu estava em transe, juro. Fiquei ali parada, pensando em tudo aquilo que tinha acabado de ver. Na cerimonia, na dança ( impressionante), nos rodopios velozes dos dervixes, e fiquei tentando imaginar como seria esse espetaculo sem turistas. Enfim eu amei e pretendo ver de novo qdo voltar a Istambul. Vou anotar a dica do mosteiro.
    Tb fiquei imaginando como seria a estacao na epoca aurea do Orient Express. Beijao, parabens por mais um post lindo.

  6. Rodrigo Barneche

    Olá Emília, obrigado pela visita no blog. Eu já era frenquentador d’A Turista Acidental há algum tempo, gostamos muito dos teus relatos e do teu estilo de viagem. Um abraço e nos vemos por aqui.

  7. Emília

    Viagemafora, vale a pena assistir numa próxima vez!
    Então não fui só eu, Maryanne! Achei que em determinado momento poderia ser entediante, mas não: fascina mesmo, hipnotiza…
    Numa próxima vez, entre em contato com esse pessoal do Les Arts Turcs: fica num predinho ao lado da entrada da cisterna. O dia em que poderia ter uma cerimônia seria minha última noite na cidade e não quis correr o risco de ficar sem ver nenhuma, mas acho que deve ser interessantíssimo.
    Um beijo!
    Bacana, Rodrigo! Obrigada pelas visitas também!

  8. Mari Campos

    Que lindo, Emilia! Tambem nao sabia disso, nao. Mas os dervixes sempre me instigaram. A coisa toda sempre me parece tao triste, mas taaaao triste, e, ao mesmo tempo, hipnotizante. De uma beleza singular mesmo.

  9. Ana Paula

    Olá, Emília! Acompanho o seu blog pq tb vou fazer Turquia e Grécia este ano. Que bom que vc voltou a escrever. Adoro suas informações!!

  10. eduluz

    Professora, que aula emocionante.
    E foi bom pois estamos com os nossos sentimentos a flor da pele.
    Abs.

  11. Emília

    Mari, não é nada triste, não! É uma experiência encantadora, posso te garantir, e que me fez sair do salão com leveza.
    Oi, Ana, obrigada! Eu demoro um pouco, mas vai saindo 😀
    Edu, tenho certeza que vocês vão gostar. Espero que estejam todos bem e aproveitando Paris como se deve. Um abraço!

  12. Camila

    Emília, eu já tinha lido sobre os dervixes e mesmo só com palavras a cerimônia sempre me emocionou. Adorei conhecer mais um pouquinho aqui! Beijos!

  13. Emília

    Camila, é tocante observar uma cerimônia tão cheia de significados…e sem palavras. Só música e movimento. E como todos respeitaram o pedido de não conversar e não tirar fotos com flash (milagre!), o ambiente era de uma delicadeza só, mesmo com tanta gente.
    Um beijo!

  14. Fê Costta - viaggio mondo

    OI Emília!!
    É como vc disse, o efeito é hipnótico!! Eu adorei assistir ao espetáculo! A música sufi é belíssima e deixa o ambiente ainda mais encantado!
    Bjos para vc! E ótima viagem ao Marrocos!! 🙂

  15. Marcelo

    A-do-rei!!! O autor turco mais famoso da atualidade, Orhan Pamuk, conta no seu livro Istambul que os mosteiros sufistas foram paulatinamente fechados pela onda ocidentalizante que contagiou toda a cidade, principalmente após a República. Que bom saber que a tradição continua viva.
    Ao ver essas imagens belíssimas, pensei como vc, Emilia: imagine como são essas cerimônias nos próprios mosteiros, voltados para eles, os sufistas.
    Deve ser indescritível!!

  16. Emília

    Oi, Fê! Pelo jeito realmente os rodopios nos pegaram de jeito mesmo, pelo menos quanto a mim, a você e à Maryanne…a música realmente ajuda a entrar no espírito da cerimônia.
    E ansiosa por ver os posts do Egito! 😀
    Marcelo, foi uma pena que não consegui ver esta cerimônia mais discreta…mas a de Sirkeci é muito bonita, recomendo muito! Mesmo sendo feita para turistas, com certeza você iria gostar, tendo interesse no assunto…
    E, uma pena mesmo que os mosteiros tenham quase desaparecido naquela época, mas os poucos que ficaram conseguiram manter a tradição, que hoje pode ser vista por nós…ainda bem!
    Um abraço!

  17. Geo

    Emília, quero ir a Istambul este ano. Vou te pedir ajuda para o planejamento, tá? O seu blog é lindinho! Beijos

  18. Maryanne hotelcaliforniablog.wordpress.com

    Uma pergunta pra quem ja foi e adorou como a Emilia, a Fe e eu.Tentei encontrar alguma, qualquer musica sufi no I-tunes e nao tive sucesso. Alguem conhece alguma?

  19. Lucia Malla

    Só de ver o vídeo, já fiquei embasbacada. Imagina ao vivo!!
    Emília, q barato! Adorei! 🙂
    Bjão.

  20. Emília

    Geo, fique à vontade! Que maravilha ver mais alguém indo para a Turquia e trazendo histórias de viagem 😀
    Maryanne, também não, mas tem um CD que parece bem interessante na Amazon, de introdução à música sufi: http://www.amazon.com/Rough-Guide-Music-Various-Artists/dp/B00005AVNK/ref=sr_1_4?ie=UTF8&s=music&qid=1266769099&sr=1-4
    Lucia, nada como boas vibrações para nos deixar leves…mesmo que sejamos apenas expectadores…é mesmo muito tocante. Adorei ver você aqui!
    Um beijo, meninas!

  21. Boipeba

    Lindo lugar, maravilhoso.

  22. Salahuddin Ansari

    O Sufismo é a tradição esotérica e interna do Islam, única e capaz de persuadir o fanatismo e radicalismo.
    http://www.estradadaharmonia.blogspot.com

  23. Emília

    Salauhuddin, pelo pouco que conheço, o sufismo parece mesmo o caminho para o entendimento.
    Um abraço e obrigada pela visita.

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